"Jogo da Velha 18: Um justo, a literatura e o rímel"
Não sei como as coisas se relacionam. Se vocês descobrirem, me contem.
1. Flavio Di Giorgi
De acordo com a cabala, existem, permanentemente, 36 justos na terra. São eles e elas que sustentam o mundo, mas ninguém, nem mesmo eles, sabem que o são. Não saber que se é um justo é, justamente, uma das condições para sê-lo, já que só é possível ser justo se você não fica ostentando: “olha como eu sou justo!”
Pode ser o eletricista que consertou a luz da sua casa, a moça que te atendeu numa loja um filósofo ou uma freira, não importa. Se um deles morre, é preciso que, imediatamente, outro o reponha. Senão, o mundo acaba.
Gosto dessa ideia do mundo depender de quase nada ou de quase ninguém. O Borges tem um poema que diz que o mundo inteiro depende de alguém que, de repente, descobriu uma etimologia inusitada, ou de alguém que fica observando uma gota cair da torneira.
Na mitologia hindu, existe um Deus, descrito por Roberto Calasso, que protege as sílabas. Se uma única sílaba escapar da palavra certa no momento certo, o mundo acaba. E no próprio judaísmo, também não se pode errar um único traço de uma única letra na escrita de uma reza. Caso contrário, o anjo não poderá te proteger. São anjos muito exigentes, que gostam de tudo muito bem anotadinho, traço por traço de cada letrinha. Se não, eles acabam com o mundo.
Sílabas que sustentam o mundo.
Esses 36 justos da Cabala são chamados de “lamedvovnik” e o Borges, novamente, no “Livro dos Seres Imaginários”, inventou os “Lamud Vuvnik”. Esse apelido vem das letras hebraicas que compõem, cabalisticamente, o número 36: lamed e vav. O lamed vale vinte e o vav, dezesseis. Trinta e seis é o dobro de dezoito, o número sagrado do judaísmo que, na língua das palavras, significa vida, ou “chai”(se pronuncia rái). O apelido desses seres, “lamedvovnik”, é a abreviação das letras que, por sua vez, correspondem a números.
Numa série de programas delirantemente inteligentes, a velha mais admirável do mundo, uma louca chamada Laurie Anderson, conta sobre uma lenda de que todas as letras sagradas da Torá foram gravadas no papel com fogo negro, o fogo de Deus, masculino e fálico: pá-pum. Mas que as esposas iam secretamente aos templos e gravavam mensagens secretas, por entre as linhas negras, usando fogo branco. O fogo das mulheres, o fogo da cesta de ficção da Ursula LeGuin, de quem coleta mais do que mete: o pau, a faca, o punhal, a espada, a metralhadora, o tanque, o foguete, o cartão, o pé na bunda, o homem escreve metendo.
Pois eu conheci um desses justos. Vivo procurando, tentando identificar se existe algum lamedvovnik circulando por aí e já identifiquei alguns poucos.
Em primeiro lugar está minha cachorra, a Samba. Não tenho dúvidas de que ela é uma lamedvavnika (e como amo esse pseudônimo ídish, que preserva o que, para mim, é a essência do judaísmo, um ídish de um vilarejo polonês no século XIX, onde todo mundo tinha um apelido: o sapateiro, a costureira, o leiteiro, a padeira, todo mundo no diminutivo e tirando sarro um do outro.)
Mas, em segundo lugar, depois da Samba, conheci o
Flavio di Giorgio.
Espero que alguém que me lê também o tenha conhecido e com certeza concordará.
A começar pela humildade.
Nunca conheci ninguém que, com tamanha genialidade, não pensava nem por um segundo em prestígio, não tinha nenhuma vaidade a não ser ver os outros felizes. E não fazia isso intencionalmente, para ser santo ou ser chamado de generoso. Ele simplesmente não sabia ser de outro jeito. O Flavio di Giorgio se alimentava de espanto e se espantava com absolutamente tudo: com um nome, com seus olhos, com o assunto sobre o qual se falava, fosse o que fosse, desde uma caixa de fósforos até a Guerra do Peloponeso. Não importava. Para tudo ele valia uma história, uma anedota, a notícia de um livro que ninguém conhecia ou outra forma de ler um autor que todos lêramos. E tudo com o espanto de um noviço, como se fosse a primeira vez diante de tudo.
Suas gavetas viviam abertas, com jornais e livros empilhados e espalhados pelo chão, a camisa para fora da calça, descabelado e com os óculos frouxos, sem a menor ideia de horários e datas. Nem mesmo o assunto da palestra que daria ele sabia com antecedência. Eu o avisava e ele dizia “ah, que lindo”, Machado de Assis ou Anaximandro, e começava a recitar de cor trechos do autor sobre quem falaria, na rua, no carro, sem parar e criativamente horas seguidas, sem que ninguém percebesse, porque estávamos assistindo ao teatro do mundo em ação, até alguém avisar que o tempo tinha acabado. Para ele, o conhecimento não tinha a ver com fatos, embora eles fossem úteis. Eram as histórias que o ocupavam. E é óbvio que sendo como era, com essa curiosidade plena, ele nunca teve tempo de ser ganancioso, vaidoso ou egoísta. Era como se o estado de espanto o impedisse de qualquer baixeza.
Nunca conheci ninguém como ele, que me deu a melhor lição da vida, quando eu reclamava das turmas de adolescentes:
– Noemi, se três pessoas, numa sala de cinquenta, estiverem prestando atenção em você, com o olho brilhando, isto é vida. Como Jesus, que espalhava semente e apenas algumas fecundavam, assim é com os professores. Três sementes é muito e é para esses três que você deve dar aula.
Não sei quem foi que repôs o Flavio di Giorgi na terra, depois da sua morte. Sei que o mundo, a duras penas, continua por aí.
Mas não deve ter sido um trabalho fácil para os anjos.
2. Uma gota pode ser a literatura
No final do romance “A marcha de Radetzki”, que narra o declínio do império austro-húngaro, o Kaiser está visitando um batalhão do exército, isolado numa fronteira.
Com preguiça de inspecionar as fileiras, seus olhos se voltam,
“como de costume, para algum lugar distante, onde já se erguiam as bordas da eternidade. Enquanto isto, ele não percebeu que uma gota transparente como cristal surgiu em seu nariz, e que o mundo inteiro olhava fixamente para aquela gota, que, por fim, escorreu sobre o bigode prateado e ali se acomodou, invisível.
E todos se sentiram aliviados. E o desfile pôde começar.”
Esta gota transparente no nariz de um Kaiser velho, num império em decadência, é a própria literatura. Se alguém te perguntar, mas afinal, o que é essa tal de literatura, responda lendo esse parágrafo em voz alta, ritmada e pausada. E não diga mais nada. Você vai ver os olhos dessa pessoa brilharem, num “ahhhh, claro”, lembrando das outras vezes em que ela teve essa sensação de tudo coincidindo, o corpo, a alma e o mundo, o Eu e Tu, do Martin Buber. Você lê esse parágrafo e a pessoa vira um cometa vertical: “ahhhhh, claro! Agora entendi o que é a literatura”.
Mas por que acho que nesta gota está a literatura?
É difícil escolher por onde começar, já que as razões são muitas. Desde a respiração, os ritmos variáveis, as pausas, passando pelas metáforas, a metonímia inacreditável, a hipérbole e a mudança de perspectiva para a gota, até a grande ironia final. Mas, para melhorar, como se tudo isso já não bastasse, as característica listadas acima coincidem exatamente com seus significados. Mais ainda: são frases que definem o que narram e que fazem acontecer aquilo que as palavras dizem.
É o milagre da abracadabra.
Ninguém jamais teria visto esta gota cristalizada no nariz do Kaiser e sua simbologia da decadência física e moral de um homem e de um império, senão o narrador da “Marcha de Radetzki”. Essa gota é vista não só por esse destacamento do exército austro-húngaro, mas por todos nós, que a lemos. Estamos nós todos olhando para ela, durante a leitura, mais de cem anos depois. A gota parada lá, metonímia de um Aleph da História, onde se vê tudo o que se passou na vida daquele homem, que não deixou de envelhecer por ser o grande Imperador. E foi a gota cair nariz abaixo e se alojar, invisível, atrás do bigode, assumindo sua existência real, para a câmera da frase mudar de perspectiva e a gota observar, invisível, o general passar vergonha.
E, além de tudo, as duas frases finais, logo depois de uma grande pausa,:
“E todos se sentiram aliviados. E o desfile pôde começar.”
Que conjunto de frases, que primor de sintagmas. Essas duas frases curtas acentuam o drama e, mais ainda a ironia. O desfile, na verdade, não está começando, mas terminando. Uma antítese que só revela o ridículo teatral de toda a situação.
Será que também nós não estamos, ainda uma vez, “começando o desfile”?
Ou seja, Joseph Roth encontrou as palavras, o ritmo e, provavelmente em alemão, também os sons que querem dizer o que essas palavras inventam. Através desse narrador, podemos ver o que ninguém jamais veria e que, apesar de não ter existido, existiu. E não só existiu, como definiu uma visão sobre as guerras, sobre um conceito ético de nobreza e sobre a visão de mundo imperialista e aristocrática.
Tudo isso representado nessa gota, que derruba o imperador e o império. E todos podem respirar, aliviados, para começar o desfile.
And that’s what literature is all about.
3. Um rímel na velhice
Eu não sabia que “nossos cílios vão ficando mais finos e esparsos à medida que envelhecemos” e que os rímeis comuns não mais os alcançam e tampouco alongam. O resultado é que as mulheres mais velhas passam um rímel (que hoje, não sei por quê, se chama mascara, sem acento) que, por não alcançar os tais cílios finos e esparsos, deixa as velhas com cara de maquiagem mal passada.
Mas eu não sabia de nada disso. Passava rímel inocentemente e não percebia ninguém comentando: “coitada, os cílios finos e esparsos dela não foram atingidos pelo rímel”.
Acontece que escutei, no vestiário da academia (espaço essencial para ignorantes dos cuidados corporais), uma amiga mais velha dizer que comprara um rímel especial para idades maduras. Um tal de Moritz, Saint Moritz, qualquer coisa assim. Puta merda, eu pensei, rímel para idades maduras. Idades maduras, outro eufemismo idiota. Desde criança todo mundo dizia que eu era madura, já sou madura faz sessenta anos e agora eles vêm com essa conversa? Daqui a pouco vai surgir um novo eufemismo: idade outonal, idade sábia, rímel para cílios vetustos.
Mas vestiário é vestiário e essa amiga realmente tinha os cílios bonitos naquele dia, grossos e definidos. E qualquer mulher sabe a diferença que um cílio bonito faz.
Outra noite, outra amiga, agora na minha casa. Linda e mais de vinte anos mais jovem. Falei do tal do rímel. “Jura?!, ela exclamou (claro, né, senão por que eu teria posto “?!”), eu sou jovem mas tenho cílios de velha, finos e esparsos. E, sem pensar, encontrou o link no google e me mostrou, com o preço: 149, achando barato.
Eu tinha acabado de comprar um rímel da Natura, acho que por 59. Me parecia bom, meus cílios ficavam bem ressaltados, não tenho certeza se mais grossos e definidos. Mas fui dar uma pesquisada. E pronto. Acabou meu sossego. Não só começou a aparecer tudo quanto é propaganda de produtos para idades maduras, como procedimentos dermatológicos, velhas independentes e sem medo de mostrar sua idade, quase todas com cílios grossos e definidos. De vez em quando, vinham, estratategicamente (observação), os produtos da Le Moritz.
E o que aconteceu?
Comecei a me olhar no espelho e pesquisar meus cílios, coisa que nunca tinha feito. Nunca tive problema nenhum com eles, ao contrário.
E comecei a achar que eles estão finos e esparsos.
(Eu era cobaia de um teste projetado pela marca, mais o algoritmo, um tipo de Show de Truman, e não sabia. Claro, né, senão o teste não valeria.)
O próximo passo da marca foi me mandar um filminho. Uma mulher “madura”, provavelmente com a mesma idade que eu, em torno de sessenta, até feinha. Olha a esperteza. Eles não criam um filme com uma linda mulher de sessenta, dessas impossíveis de atingir. Não. É uma mulher igualzinha a você, até pior. Por essa mesma razão, sua fala é muito mais convincente e você acredita que ela é uma secretária ou enfermeira que provou mesmo a marca e quando ela diz: “você sabia que a maquiagem em pó ou líquida só torna sua pele madura ainda mais oleosa e com péssima aparência?” e você lembra que usa base líquida e blush em pó e você, que já se sente uma burra nesse quesito, se sente ainda mais banana. Nossa, eu realmente não entendo nada, achava minha base tão boa, mas se a Naira e a Rita gostam, se elas compraram, quem sou eu para duvidar? E “por outro lado”, diz a Dominique, você vê capitalismo e manipulação em tudo. Lembra da Dona Lili, “Noemi, você pega tudo muito pesado”.
E comprei o tal do conjunto Le Moritz para peles maduras: hidratante, batom e blush num só, iluminador e ele, o rímel.
Bastõezinhos pequenos, bem pequenos, parecendo amostras. Achei que vinha uma base, mas o hidratante é transparente. Posso ter me enganado. Iluminador não sei passar, preciso aprender. O rímel parece ok. O preço não foi tão caro.
Mas eu não devia ter comprado.
4. Resultado do concurso de palavras malucas
Resultado do concurso que lancei:
Eu não esperava tantas respostas e tão boas. Por isso, decidi sortear e fiquei muito satisfeita com o resultado.
Os ganhadores são:
Por favor, entrem em contato comigo para eu enviar os livros autografados.
5. Considerem.
Adoro escrever essas newsletters, mas tem me dado um trabalho danado para sair bem caprichado.
Reflitam sobre gastar $8.00 por mês para ajudar a mantê-la.
Beijos,
Noemi
Obrigada, Noemi, pelo texto maravilhoso sobre meu pai. Estou muito emocionada.
“Não existe nem sul, nem norte, nem leste, nem oeste, só o amplo e ilimitado círculo da morte, para quem compra o passaporte rasgado para o Eldorado”. Foi o que anotei numa das maravilhosas aulas do Flávio, na PUC. Era apaixonante.