"Jogo da Velha 16: sobre o Conto, Sansão e o esquecimento"
por que Sansão se lambuza de mel?
1.
O conto.
Pra começar que o nome dele é “conto”. É lindo. O substantivo que coincide com o presente do indicativo do que ele faz: contar. Eu conto. Tipo Eu Tarzan. Eu Conto. O conto se auto apresentando pra todo mundo e dizendo o que ele faz.
E é isso mesmo o que ele faz. Para defini-lo, basta pensar isso: contou alguma coisa? É conto.
Mas o que é contar? Por que usamos esse verbo também para os números? Tem alguma semelhança entre contar números e contar acontecimentos? Mesmo dentro da própria palavra “acontecimento” já está aí a coisa semente, o osso do que é contar. Sinônimo de acontecer.
“Contar” vem do francês “racconter”, ou “contar uma história”, que vem do latim “computare”, ou “avaliar, contabilizar, considerar” e, originalmente, “podar” que, por sua vez, vem do indo-europeu “pau”, ou “cortar, bater, carimbar”.
(Parênteses. A etimologia é a rainha boa das ciências, cruzando as fronteiras da geografia, da História, da filosofia, da antropologia, da arqueologia, de todas as logias e sofias e calidades e doxas, da teologia, da filologia, da psicanálise e das raízes obscuras e primeiras de quando a língua eram os nomes das coisas e ninguém pensava que pensava. E é pra lá que devemos ir, pro fundo e não pra cima, pra trás e não pra frente.)
Como sempre, a própria palavra “contar” já contém a história do que ela quer dizer. Separar e colocar uma coisa depois da outra, ou do lado da outra, empilhar, considerar as coisas e enumerá-las, avaliar os altos e os baixos e dar sentido ao que acontece, ou poderia acontecer ou ainda vai acontecer.
Aliás, quase igual à etimologia de “análise”, que também é separar em partes.
E quem poderia dizer que a psicanálise e as histórias não são irmãs, senão espelhos?
E é por isso que um conto é diferente de um romance. O romance não é mais uma história, já faz bastante tempo. Ele pode ter uma história, pode ter várias, mas não é com isso que ele está ocupado e sim em criar uma personagem em assombro consigo e com o mundo.
O conto não. O conto é franco e põe o pau na mesa. Vim aqui para contar ou para inventar uma coisa que aconteceu depois da outra.
Eu Conto.
A partir de 11/7, vou dar um curso de contos na Escrevedeira. Se quiser se inscrever, é aqui:
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2.
Sansão mata um leão com as próprias mãos e depois de um tempo retorna para ver a carcaça. O esqueleto está repleto de mel e milhares de abelhas zunindo. Sansão se lambuza, recolhe um tanto do mel e, equilibrando na concha das mãos, leva o que sobra para os pais, que se lambuzam também. O David Grossman comenta esse acontecimento no livro extraordinário “O mito de Sansão”, um comentário talmúdico – interpretação do texto bíblico – crítico – leitura teórica do mito – poético – estudo da linguagem e das palavras – e profético do que está acontecendo no mundo neste momento exato. Hoje, precisamente, dia 22 de junho de 2025, dia do início da entrada dos EUA na guerra contra o Irã. Por que Sansão, o fodidão fodido, mata o leão e, mais tarde, se lambuza de mel e o carrega nas mãos para oferecer aos pais, para quem ele tinha ocultado sua façanha? Qual é o segredo de Sansão, maior do que os cachos dos seus cabelos, qual é o seu ponto fraco?
Seu ponto fraco é sua força. É ela que o oprime e que o isola do mundo. Para o David Grossman, o Sansão era, no fundo, um artista sem potência para realizar sua arte e, por isso, a transformava em violência sádica, o que lembra o argumento do “Dialética do Esclarecimento”, de Adorno e Horkheimer. Já estava tudo lá, na Bíblia Antiga, a mesma narração pelos mesmos narradores.
Eles, os winners e, do outro lado we, the writers.
Se estiver interessado no livro, aqui: O mito de Sansão
3.
E se em vez de buscar uma luz no fim do túnel, buscássemos um túnel no fim da luz?
4.
Sempre ganhei jogos de memória. Tinha aquele: a gente sentava em roda e a primeira pessoa dizia: “minha mãe foi à feira e comprou tomate”, a segunda, então “minha mãe foi à feira e comprou tomate e banana” e assim cada pessoa acrescentava uma fruta ou legume e ganhava o jogo quem lembrasse mais. Cada um que ia esquecendo, ia saindo. Eu sempre sobrava. Decorava tudo rápido e sem esforço nenhum. Cantigas de acumulação, jogo da memória de tabuleiro, Stop, qualquer coisa que tivesse memória e palavra, eu queria brincar, porque sabia que iria ganhar.
No futuro, que hoje é meu passado, me tornei tradutora simultânea e me lembro de, muitas vezes, os palestrantes virem me agradecer, espantados com a precisão da tradução. No trabalho de professora, escritora e crítica, no trabalho de tradutora, a memória não é auxiliar: ela é constitutiva. A possibilidade de recuperar (etimolojinha) o que já não existe, seja um segundo atrás ou cinco mil anos, seja Dom Pedro I ou minha dor de cotovelo, Macondo ou fwqf, uma data, uma frase, uma canção, só ela é que permite que haja sintaxe na nossa mente, que se possa dar sentido ao que se pensa e se sente.
A memória é foda.
Mas eis que, como acontece com todo mundo, ela, ela mesma, a memória, me falta.
Estou dando aula, repetindo alguma coisa que já falei inúmeras outras vezes, e eis que, do nada, o mesmo nome de sempre não chega, não vem. E não é só ele, mas o nome do livro e até o que eu queria dizer. Muitas vezes, não consigo retomar o assunto quando tomo um desvio e preciso perguntar muitas datas e títulos para os alunos. Me faltam metáforas, exemplos, alguns que já conheço há mais de quarenta anos. Poemas que eu sabia de cor me escapam no último minuto.
Estou ficando gagálica?
Capaz. Todos dizem que, na velhice, a memória recente vai diminuindo e a memória distante, aumentando. Seria por isso que os velhos ficam só lembrando da infância, que nem crianças. É verdade. Tenho percebido que, à medida que envelheço, rejuvenesço (not outside, of course) e vou ficando mais adolescente, com uma memória mais fraca para dados e nomenclaturas.
Em compensação, acho que estou mais “inteligentinha” (como diria o filósofo impondéravel). Estabeleço conexões mais complexas entre as coisas, talvez porque esse mergulho no passado distante – minha infância, os livros antigos – agora, na velhice, me permita ter um olhar mais original do presente. Sei lá.
Só mais uma explicação fajuta para esse fenômeno de perda da memória que, é claro, se chama velhice.
5.
Habilitei esta newsletter para o formato pago. Por enquanto, contribui quem quiser, com R$8,00 mensais. Agradeço a quem puder contribuir, porque esses textos dão bastante trabalho!
Beijos e marquem na agenda: 22/7, lançamento de Te dou minha palavra na Livraria Megafauna e 1/8, na Livraria das Marés, em Paraty.