"Jogo da Velha 15: sobre a beleza – na escrita e na cara"
Como o belo pode ser feio e o feio pode ser belo.
1) Corta!
Quem é meu aluno, conhece a máxima: “Escreveu uma coisa linda? Corta.” Digo isso faz tempo e, outro dia, descobri que algum editor famoso dos Estados Unidos dizia a mesma coisa para um dos seus autores mais importantes: “selecione todas as partes do livro que você mais gostou. Agora apague.”
Por quê?
A literatura é feita de tempo, essa é a sua matéria.
O tempo das palavras: cada palavra tem muitas histórias dentro e atrás de si. Sua etimologia, suas raízes, lugares por onde ela passou (a história das migrações), variações e significados diferentes que ela adquiriu e seus porquês. Cada palavra, se cavoucada a fundo, esconde e revela infinitas outras histórias.
É só pegar um exemplo ao acaso: a palavra “palavra” vem do francês “parole” ou “fala”, que vem do latim vulgar “parauola”, ou “discurso”, que vem do latim “parabola”, ou “comparação”, que vem do grego “parabole”, literalmente “por de lado ou justaposição”, que, segundo Apolonio de Perga, do século II B.C., é produzida pela aplicação de uma determinada área a uma determinada linha reta.
Ou seja, a palavra “palavra” permite criar, pelo menos, uns dez romances desses grossões: “Dos mistérios pitagóricos das parábolas às antenas parabólicas”, “As relações entre a geometria e as comparações poéticas”, “Palavras, parábolas: justaposições”. Geografia, política, ciência, antropologia, arqueologia, etimologia, filosofia, história, tudo na palavra “palavra”. Agora imagina isso com cada palavra que um texto literário contém. Imagina todo o tempo de cada palavra e como isso a torna maciça. Experimenta bater numa palavra dessas – ela é dura que nem aço e quem vai se machucar é você.
No meu livro “Escrita em Movimento – sete princípios do fazer literário” (auto propaganda, tudo bem), falo do que chamei de “resistência das palavras”. Penso que a literatura, sobretudo, recupera para as palavras sua capacidade de resistir, ou seja, tornar-se impenetrável. Resistência é isso: grau de impenetrabilidade. Quando a palavra tem tempo – o tempo de suas histórias, o tempo que a escritora levou para decidir usá-la, o tempo dessa palavra na história da escritora e suas relações de memória e de subjetividade com essa palavra – ela resiste. Ela pode ser interpretada, lida e relida, repetida e reproduzida, mas ela se mantém firme como uma “Nonada”, como uma “pedra no meio do caminho” ou como “isso de ser exatamente o que se é ainda vai nos levar além”. Você rodeia por todos os lados, examina e escrutina e sempre fica um mistério, ela não se rende, fica lá, impávida, cheia de si e de tempo.
“Penetra surdamente no reino das palavras” e, chegando lá, escuta a pergunta: “trouxeste a chave?”
E a frase bela, “acendeu-se uma chama pululante e rubra”, “as pedras empedernidas se apropriavam das propinas”(essa até que ficou boa!) ou mesmo as mais sofisticadas, tipo “o azedume das ameixas me fazia contrair a língua”, a frase bela não tem tempo. Ela não significa, ela não é signo, ela não é nada. Ela é só “efeito”, uma das palavras mais perigosas da língua, emprestada, como tantas, da física. E efeito é o quê?
Efeito é resultado.
E resultado, sem experiência, não é resultado.
É fakenews.
Atenção, atenção, literatura também tem fakenews. É a literatura bela, que não vem de lugar nenhum, não vai pra lugar nenhum, não quer dizer nada, não se compromete com nada, não dá a cara a tapa, não bota pra foder e não quer nada além de ser lida na festa.
2) FILOSOVELHA
O que é tão feio na velhice?
Sim, porque o pavor que a velhice provoca é, essencialmente, pela feiura (que, feiamente, não tem mais acento).
Mas o que é mais feio: as rugas, a flacidez, o ressecamento, as quedas ou o vislumbre da morte? No teatro dos olhos de uma velha, a morte vai passando de contrarregra a coadjuvante até se tornar a protagonista. A gente olha nos olhos dessa velhíssima velhona e vê ela, a morte, ela mesma em pessoa, na superfície da pupila, te olhando de frente. “Oi”, ela fala, “tudo bem? Conhece aquele restaurante, hoje eu li um livro mais ou menos, minha neta me telefonou”, ela vai contando da vida e a gente vai vendo a morte nos olhos, nos braços, na boca e na voz, por toda a parte a gente vê o fim. Como se conversássemos com uma presença já um pouco ausente, como se em cada merdinha de gesto se escondesse o seu contrário. Via minha mãe segurando o garfo e sentia uma vitória, ela tinha conseguido, ela ainda estava lutando contra a morte. Mas, ao mesmo tempo, eu sabia que era uma vitória de só mais algumas semanas, talvez alguns meses. A morte só tinha concordado em esperar um pouco mais, só isso.
Porque as rugas, tão temidas, não são intrinsecamente feias. Aliás, isso nem existe. Mas para nós, mulheres ocidentais, os parâmetros de beleza e feiura têm se reduzido cada vez mais à juventude e à velhice. Como se a juventude fosse intrinsecamente bela e a velhice, intrinsecamente feia. Ou seja (e ontem escutei Marilena Chaui falando sobre a doença neoliberal de cada um tornar-se empresário de si mesmo), é belo aquilo que tem serventia, inclusive as pessoas. E o que tem serventia é novo, jovem e lisinho.
E uma velha: uma velha é o quê? Coroca, caduca, calejada, gagá, maluca, doida varrida, you name it. Para minha mãe, de novo, como para infinitas velhinhas, o maior temor era tornar-se dependente.
Isso é nojento. Se considerar fracassada, no fim da vida, por se tornar dependente. É o mínimo que o mundo tem de fazer pelas velhas. Não permitir que elas se sintam culpadas nem feias por se tornarem mais dependentes.
Só para efeito de comparação: qual o tipo de floresta que nós, aqui na Baixa América, idealizamos? A floresta vermelha e laranja, essa que não existe por aqui. E essa floresta, (já falei disso em alguma outra edição), se chama Floresta Caduca. Florestas caducas são compostas por árvores cujas folhas caem. E as folhas vermelhas, laranjas e amarelas estão prestes a cair.
É isso.
Elas são lindas. Laranjas, amarelas e vermelhas. Juntas, é como se a floresta estivesse queimando um fogo lento e domesticado, flutuando com a velocidade do vento, se entrecruzando e caindo, uma chuva de folhas que fazem um barulhinho bom quando a gente pisa.
As folhas secas do Nelson Cavaquinho, as folhas da relva de Walt Whitman, folhas que, por estarem no chão e não mais suspensas, ficam mais próximas dos fungos e das minhocas. Folhas que, ao caírem, se libertam da dependência do ciclo regular da árvore e ficam lá, deitadas, fazendo o bom barulhinho, fazendo tch-tch-tch, uma velha é uma folha laranja caindo, uma folha seca gostosa de deitar porque ela faz crac-crac-crac ela dá conforto ela esconde ela protege ela disfarça ela aquece ela conhece o submundo ela tá de boa.
Então por que catzo, por que, meu deus do céu, minha nossa santa senhora, por que raios achamos linda uma floresta laranja e suas folhas secas, mas não uma velha vermelha, laranja e amarela? Uma velha está em processo de queda e cair pode ser tão bom, bem devagarzinho mesmo, ir acompanhando a aproximação do chão e todos os seus segredos. O chão fala um alfabeto muito diferente desse da árvore, um alfabeto sem forma, o alfabeto do que veio antes. E é por isso que as velhas vão ficando sábias – porque vão cada vez pertencendo menos à hierarquia da árvore.
Elas vão virando fogo, vão se queimando. Uma velha queima – vinca, se dobra, se apaixona, incendeia e todo o resto que o fogo faz.
Uma velha é fogo.
3) Mais um trecho do livro “Te dou minha palavra", a ser lançado na Livraria Megafauna, no dia 22/7 e na Livraria das Marés, na FLIP, no dia 1/8.
Se “Construção” simbolizou minha iniciação na poética e na política, “O que será”, na versão cantada por Milton Nascimento — “à flor da pele” —, anunciava o sexo. Para uma adolescente espremida entre a culpa, a fé e o socialismo, aquilo “que me bole por dentro, que todos os tremores me vêm agitar”, naquela voz, era o perigo. Apesar de eu ser mal falada e despudorada, o sexo me metia medo. Caminhando pelo mato com o Jorge — alto e bronzeado —, peguei no chão uma camisinha usada, achando que fosse uma embalagem velha de Eskibon. Acampada numa barraca em Interlagos, contra a vontade, para assistir a uma corrida de Fórmula 1, eu não sabia o que era “seda” e, diante das tentativas do Ricardo de transar comigo, ele um surfista carioca, recuei assustada, “Não encosta em mim”.
Por hoje é só. Obrigada por me acompanhar.
Beijos!
é preciso recuperar a dignidade das rugas, a tradução visual da experiência e, quase sempre, da sabedoria acumulada ao longo dos anos.
Nossa, Noemi, tantas coisas para comentar, né? Mas vamos lá. Sobre o conselho de cortar, não sei se há outro editor nos Estados Unidos, mas o Stephen King orienta isso naquele livro famoso dele “Sobre a Escrita”. Ele diz: “Kill your darlings”.
Sobre a fakenews na literatura, não sei porquê, mas fui lendo suas palavras e elas foram se transmutando em nome e sobrenome que andam bem famosinhos atualmente. Xi, melhor não. Vamos adiante que, afinal, velhice boa é a dos outros, né?
Ou pelo menos era, hoje, nem isso mais, com essa guerra narrativa contra o envelhecimento. Até acho que a indústria da juventude tenha surgido de um anseio todo nosso, humano, de evitar a velhice. O diabo é o capitalismo financeiro - essa enorme doença que vai acabar com a humanidade. Ele elevou o negócio a um volume insano em nome dos lucros a serem distribuídos aos acionistas.
Eu venho falando isso há anos sobre o capitalismo: ele é o grande culpado por todos os males, inclusive a mudança climática. Mas as pessoas ficam confusas. O Zuckerberg queimou bilhões para inventar óculos 4D e o pessoal cada vez mais enxerga tudo em apenas duas dimensões. Ataquei o capitalismo? COMUNISTA!
Ora, veja você, nem passa pela ideia que talvez eu esteja dizendo algo diferente. Uma nova ordem, nem que seja simplesmente desacelerar para retomar a VELHA conexão - em lugar de competição - com a natureza, com os seres vivos, com as emoções profundas, as rugas que nos contam histórias na frente do espelho.
E agora tchau, que velho quando comenta, vira logo uma newsletter inteira.