1- Elucubrações aleatórias sobre a velhice💋
Começamos a envelhecer desde o dia do nascimento e o primeiro fôlego de ar já é um sinal. As células avisam: “homens trabalhando”. E o corpo começa o processo de inflamação.
Envelhecimento é inflamação e é preciso calor para o motor trabalhar (a eletricidade não passa de uma imitação da engrenagem do corpo). Movimento é calor e, na primeira chorada do bebê, o corpo já entrou em ebulição: envelheceu.
Roma, 1672: O Padre Antônio Vieira declama, para vários representantes da Igreja, o Sermão da Quarta-Feira de Cinzas:
Esta nossa chamada vida não é mais que um círculo que fazemos do pó a pó: do pó que fomos ao pó que havemos de ser. Uns fazem o círculo maior, outros menor, outros mais pequeno, outros mínimo. Quem vai circularmente de um ponto para o mesmo ponto, quanto mais se aparta dele tanto mais se chega para ele; e quem quanto mais se aparta mais se chega, não se aparta. O pó que foi nosso princípio, esse mesmo, e não outro, é o nosso fim, e porque caminhamos circularmente deste pó para este pó, quanto mais parece que nos apartamos dele, tanto mais nos chegamos para ele; o passo que nos aparta, esse mesmo nos chega; o dia que faz a vida, esse mesmo a desfaz. E como esta roda que anda e desanda juntamente sempre nos vai moendo, sempre somos pó. Assim que desde o primeiro instante da vida até o último nos devemos persuadir e assentar conosco, que não só somos e havemos de ser pó, senão que já o somos, e por isso mesmo. Foste pó e hás de ser pó? És pó: Pulvis es.
Os padres parecem não ter entendido muito bem a mensagem, porque continuaram vestindo veludo roxo. Mas nós, mais inteligentes – e quase quatrocentos anos depois – ainda temos dificuldade: somos nada mais do que pó e cada dia a mais é um dia a menos.
We’re all growing old.
Legal. Mas se todo mundo está envelhecendo desde que nasceu, por que só aos velhos chamam de “velhos”?
Porque os velhos não estão mais envelhecendo. Já completaram o processo, deve ser isso.
Só que nós, velhos, continuamos em processo, como todo mundo. Também nós estamos indo na direção do pó, poeira, ventania. Você sente essa brisa batendo no rosto? É a tia de um amigo meu. Continuamos envelhecendo, mesmo os velhos.
Qual o limite, o gabarito?
Convencionamos, na cultura atual do Brasil, que velho, velho mesmo, é depois dos 80. Por isso, muita gente me diz: “Noemi, você está falando sobre a velhice, legal. Mas você não é velha!” Só que eu sou. Segundo a lei, tenho mais de 60, sou velha. Não pego fila, não pago ônibus, as pessoas se oferecem pra me ajudar, meu cabelo é todo branco e não consigo nem contar as minhas rugas. Pela idade dos meus filhos, eu já poderia ser avó.
Mas sou velha no coração também, bem inflamado. Quantas vezes ele não pegou fogo, se queimou quase inteiro, se consumiu de dor e de amor, tanto que já nem sei. O cérebro ali, pegando ferro, só jogando água pra apagar os incêndios, mas ele mesmo, coitado, já dando sinais de pulverização. As bordinhas meio queimadas, uns furúnculos e frestinhas.
Uma velha esquece e lembra.
Esquecer do agora e lembrar do antes – que curioso. O Padre Vieira tinha razão: a vida é círculo e é inevitável que a velha encontre a menina. Estou indo na direção dessa moça e é justamente por isso que tanta gente diz, Noemi, você não é velha nada. É porque a menina está espiando por trás dos meus olhos, agora que me lembro mais dela do que dos ingredientes pro bolo que preciso fazer ou da conta que preciso pagar.
💋 - ETIMOLOJINHA (toda vez que aparecer esse sinal, corra pra lojinha de étimos):
Elucubrar vem de ex-lucubrare e, indo mais fundo, vem de lux, ou luz. Elucubrar é estudar algo profundamente, à luz de uma vela, ou de algo que brilhe.
Aleatório vem de alea, ou dado, em latim. Na Roma Antiga, as casas de jogo eram chamadas de “aleatoris".
2 - Perguntinha:
Por que só existe o verbo “rejuvenescer” e não o verbo “enjuvenescer”? E por que não “reenvelhecer”? Por exemplo, a Jane Fonda já disse que se arrepende de ter feito tantas plásticas. Ela poderia “reenvelhecer”, se quisesse.
Pelo direito das excessivamente plastificadas ao reenvelhecimento.
3 - Uma velha é
GAGÁ
Dizem que a palavra “bárbaro” vem do grego, pois era assim que os gregos chamavam aos estrangeiros, cujas línguas não entendiam. Aqueles estranhos só falavam “ba-ba-ba”. Uma etimologia linda, porque, como todas, ela não só enuncia um significado antigo, mas conta uma história inteira e uma boa escritora 👻 faria um romance inteiro só com base nessa etimologia. Pensa, por exemplo, numa Karen Blixen, que livro lindo ela não escreveria sobre os gregos rejeitando os estrangeiros (assim como nós continuamos fazendo) e rindo da sua maneira de falar: “bababa bababa bababa”.
A etimologia me fascina também por causa disso. Só uso as palavras se for para usá-las de verdade e com verdade. Me sinto na obrigação de respeitá-las – elas têm um passado a zelar (ou “a zerar”, como diz um amigo meu). Não dá pra ficar usando de qualquer jeito. Desde “democracia”, palavra tão estuprada e corrompida, que agora virou seu contrário – o poder de poucos – até uma besteira como a diferença entre “mas” e “porém”. Cada merdinha de palavrinha tem uma história, escondida por trás da simples “você” ou da “embora”💋, por exemplo. E, se outra boa escritora quisesse, poderia escrever outro romance, bem caudaloso (Gregorio Duvivier, olha aí, estou usando “caudaloso” sem me referir a “rio”), só de digressões, pelo menos a cada frase.
Daí que eu achava que, por causa da etimologia de “bárbaro”, do “bababa”, a etimologia de “gagá” fosse porque os velhos não sabem falar direito, gaguejam e falam como os bárbaros, só que em vez de “bababa”, eles dizem “gagaga gagaga gagaga”.
Eu não iria nem procurar, de tanta certeza que tinha. Mas fui.
E descobri que “gagá” vem de nada menos do que do francês “gateau”, ou “bolo”, porque a massa do bolo é mole e quebradiça, como os velhos.
Gostou?
Não.
“Não ouve o que essa velha diz, ela está gagá”. “Ê velha gagá, tá variando”.
Uma velha gagá – mole e quebradiça – é uma velha que não fala coisa com coisa.
Que maravilha não falar coisa com coisa. Uma coisa já é uma coisa e não precisa de outra coisa pra falar com ela. Por exemplo, fazer o Drummond falar com a Xuxa é muito mais interessante do que, toda vez, com o Manuel Bandeira. A velha gagá não diz coisa com coisa, como nos sonhos e nas histórias. Pensa em Kafka. Nada de coisa com coisa. Beckett, Oswald de Andrade, James Baldwin, Virginia Woolf 💍, todos gagás. A coisa mais moderna que existe nessa vida é envelhecer.
Mas a velhice tem inevitabilidades biológicas: queda na produção de hormônios, perda da elasticidade da pele, quedas generalizadas pela morte das células, coração e memória mais fracos.
Puta que pariu, né, Deus. Mas tudo bem.
Uma velha vai gagazando lentamente. Confundo e esqueço nomes que jamais esqueci, sempre fui campeã em jogos de memória e agora fico nos últimos lugares, erro cálculos simples. Preciso anotar tudo imediatamente, senão esqueço depois de um segundo. Sério. É um segundo e desaparece. Fica só a sensação de que algo passou por aqui e deixou só o ventinho. Pode ser que nem tenha passado, como uma espécie de dèja-vu recorrente. Um mistério que circula a mente, um trombadinha que rouba os pensamentos das tuas mãos. Pior que os pensamentos, os nomes. Não só os nomes próprios, mas os nomes das próprias palavras. Coisas sem coisa, coisa com outra coisa.
Mas tudo tem um outro lado, já diziam Confúcio e minha avó Czarna.
Me parece que a perda da memória está relacionada a outra característica da velhice. A lenta perda dos neurônios castradores, aqueles que, desde a mais tenra infância👻, nos guiam, guardam e grudam: “isso não, não pode, é proibido, tem que ser assim, cuidado, juízo, é perigoso, você será punido, você precisa se sacrificar, só o esforço compensa, componha-se, contenha-se, não mexe (meu apelido na infância), não toca, de jeito nenhum, nunca, jamais, nem morta, não, nananinanão, nunquinha, nem que a vaca tussa, você vai se foder”.
Aos poucos, uma velha gagá se dá conta, na própria fala, das gafes que comete, da cara-de-pau, da licença que se dá pra dizer coisas nada a ver, sem noção (meu apelido na Escola da Vila). Uma velha gagá diz coisas que deixam os outros (principalmente seus filhos) envergonhados. O filho diz, “não liga, ela é meio louca”. Deixa, uma velha pode.
Algum neurólogo que me confirme se essas duas perdas, a da memória e a da censura, estão relacionadas. Eu sinto que sim, por experiência.
Ou seja, a perda de um certo tipo de memória – factual, cronológica, cognitiva – liberta a mente para diluir certas censuras. E, além disso, as circunstâncias de uma vida razoavelmente boa, depois dos 60, permitem que a pessoa pare de se preocupar tanto. Os filhos estão grandes, você tem um pouco mais de grana e é razoavelmente reconhecida, fazendo o que você gosta.
Agora chega a vez da velha gagá. É a hora e a vez da Augusta Matraga, de não falar coisa com coisa.
Na próxima edição, vocês vão conhecer, Augusta Matraga, a velha gagá e cara-de-pau que mora dentro de mim.
👻 1 - uso “uma boa escritora” e não “um bom escritor” como forma genérica, por pura desobediência ao uso do masculino genérico.
👻2 - “a mais tenra infância": de vez em quando, acho que um clichê cai até bem.
💋 - ETIMOLOJINHA - sabia que “embora” é a contração de “em boa hora"?
💍 - em junho, na Escrevedeira, ninguém menos que a Sandra Vasconcelos, professora de literatura de língua inglesa na USP, vai dar um curso sobre os 100 anos de Mrs. Dalloway! Fique atenta!
o gateau é doce mas não é mole não, ops, a rapadura. ou envelhecer não é bolinho.
que texto delicioso!
Adoooro porque empodera a Gagá que surge em mim aos 61!! Viva a Velha ❤️🤗